As relações entre França e Brasil, 1945-2000
A Editora Fino Traço, o Centro de Estudos sobre o Pacífico e o Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília anunciam a publicação do livro “Uma parceria em construção: As relações entre França e Brasil”, de Antônio Carlos Lessa, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e editor da Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI.
Colección Relaciones Internacionales. Serie Parceria estratégicas com o Brasil. Antônio Carlos Lessa. Uma parceria em construção: As relações entre França e Brasil, 1945-2000. Editora Fino Traço, Belo Horizonte, 2013.
Este livro empreende um grande esforço de compreensão das relações entre a França e o Brasil, desde o fim da segunda guerra mundial e o restabelecimento das relações bilaterais, até os dias de hoje, em suas vertentes políticas, econômicas e culturais. Inteiramente baseado em documentação secreta e confidencial, francesa e brasileira, este livro define os objetivos que animaram as ações dos Estados em suas permanentes interações, bem como as leituras que lhes dão os diferentes atores sociais envolvidos na formulação, gestão e implementação da agenda bilateral. O conceito estruturante é o de parceria estratégica, que serve para contrapor a densidade do relacionamento que o Brasil mantém com a França aos demais relacionamentos centrais. Além dos episódios centrais do relacionamento bilateral, como o contencioso financeiro, as questões culturais, o colonialismo e a Guerra da Lagosta, no livro procura-se investigar a natureza própria dos vínculos franco-brasileiros, caracterizando a construção de contatos essencialmente conflituosos e tendentes à ornamentalidade, que se perpetuaram desde 1945 até o início da década de 1990, e, desde então, se identificando o surgimento de condições para a construção de uma parceria profícua.
Introdução
Este livro tem por objetivo proceder a um esforço de compreensão das relações entre a França e o Brasil entre 1945 e 2000, procurando identificar e avaliar as causas que moveram os países em suas permanentes interações.
As relações franco-brasileiras, em suas vertentes econômica, política e cultural, constituem tema mal explorado na historiografia das relações internacionais. Com efeito, os poucos estudos produzidos sobre os contatos entre os dois países no século XX concentram os seus focos de análise sobre as relações culturais, desde a perspectiva da emergencia do modelo francês no Brasil até a sua decadência. Esses estudos partem sempre da constatação da existência de uma influência cultural decisiva, que teria moldado, por extensão, todas as demais dimensões dos contatos entre as duas nações. A concentração de preocupações em torno do objeto cultural, que por certo deu origem a explicações originais sobre a formação da identidade brasileira, entorpeceu, entretanto, a busca de entendimento de outros aspectos importantes do relacionamento entre a França e o Brasil.
Neste trabalho, propõe-se uma inversão da ótica que tem inspirado a produção científica das relações históricas franco-brasileiras. Partindo da constatação da relativa debilidade dos vínculos econômicos, especialmente quando comparados com aqueles que o Brasil empreendeu com outros países, pergunta-se qual teria sido o peso do elemento cultural no encaminhamento das relações bilaterais. Se a presença francesa em todos os aspectos da vida social e cultural do Brasil é tão intensa, como explicar a fragilidade dos vínculos que se estabeleceram no relacionamento político e econômico entre os dois países? Teria a amizade tradicional que nasce daqueles vínculos culturais força suficiente para redimir os conflitos que surgiram nas relações bilaterais?
Boa parte dos estudos que têm a França e as suas relações com o Brasil como objeto se guiou pela determinação do peso dos aportes culturais da França para a formação da cultura brasileira, em traços que se tornaram de fato preponderantes desde o século XIX. Neste trabalho, de modo diverso, cuida-se de determinar o peso dos aportes que a França trouxe para o desenvolvimento econômico e social do Brasil, buscando-se situar as relações bilaterais no quadro das funcionalidades características das relações internacionais do país. O conceito central que ampara essa análise é o de parceria estratégica, que entendo como “relações políticas e econômicas prioritárias recíprocamente remuneradoras, constituídas a partir de um patrimônio de relações bilaterais universalmente configurado” (LESSA, 1998 : 32).
Considerando-se que a política exterior do Brasil apresentou, especialmente a partir da primeira metade desse século, um peso preponderante para a realização do desenvolvimento nacional, supõe-se que os contatos internacionais do país se inscreveram para servir à realização desse objetivo. Buscou o Brasil o estabelecimento de relações com países que propiciassem não apenas o acesso aos insumos que lhe faltavam para dinamizar o desenvolvimento – capitais, tecnologias e mão-de-obra –, mas também apoios políticos para circundar as dificuldades que surgissem na realização da sua empresa.
Por esse motivo, assumiram preponderância histórica para o Brasil as suas relações com determinados países, que prestaram, em várias ocasiões, aportes diferentes, em medidas distintas, de recursos necessários para o desenvolvimento nacional. Na forma de fluxos de investimentos diretos, de dinamização das relações comerciais, da transferência de tecnologias ou da cooperação política, os contributos que esses relacionamentos trouxeram foram tão importantes para o Brasil contemporâneo que devem ser qualificados como frutos de parcerias. Ganharam sempre as duas partes: o Brasil, que conseguía acessar recursos escassos, e os seus parceiros, que se apoderavam de parcelas de seu mercado e podiam contar com as simpatias do país nas causas difíceis em que se envolvessem. Nessa perspectiva, seria possível enquadrar a França no rol dos parceiros estratégicos do Brasil?
Como no caso das relações com os EUA, com a Alemanha e com a Itália, não faltaram às relações do Brasil com a França oportunidades para a construção de uma parceria profícua aos dois países, tendo
em vista que, em diversas ocasiões, ambos os países necessitaram de apoio para a realização dos interesses que buscavam concretizar na cena internacional. Por que essas possibilidades não se concretizaram?
Brasil e França encontraram grandes dificuldades para o estabelecimento de projetos políticos e econômicos de interesse comum, que apontassem para a conclusão de uma autêntica parceria estratégica.
Apesar de serem economias complementares, não desenvolveram como podiam as suas relações econômicas. Tendo ambições internacionais que se tornariam convergentes com o tempo, desde quando se tornaram insatisfeitos com os lugares que lhes foram reservados no sistema internacional, não encetaram a cooperação política como deveriam.
Na falta de contatos de massa, não houve, nas relações franco--brasileiras, simpatias que criassem vínculos diretos entre as sociedades e que prestassem serviço ao desenvolvimento espontâneo dos negócios.
As relações bilaterais foram, antes, uma criação dos diplomatas, que deram origem às crises, do que dos militares, empresários, jornalistas, cientistas, entre outros, que do seu desenvolvimento não participaram.
Distantes dos atores sociais, em vários momentos substituídos pelas diplomacias, os contatos bilaterais permaneceram encapsulados na agenda que os Estados se dispunham a encaminhar. Os Estados e as sociedades olharam para direções opostas e, por isso, nunca se encontraram – e raramente consideraram as possibilidades que se criavam e se desfaziam sem que tenham sido aproveitadas. Na maior parte do período em exame, estiveram bloqueadas as condições para o desenvolvimento da parceria estratégica franco-brasileira.
Quais as causas do bloqueio que esterilizou as relações bilaterais?
Quais as forças que impulsionaram e que constrangeram o seu desenvolvimento?
Como se portaram as sociedades na realização de intereses comuns? Como os Estados procederam com a agenda de questões que lhes incumbia resolver? Neste estudo, procuro responder a esas questões, situando as relações entre a França e o Brasil no âmbito dos respectivos sistemas de relações internacionais, consolidando a agenda bilateral e buscando entender as disposições que demonstraram os países para o conflito e para a cooperação.
O primeiro capítulo deste livro discorre sobre o lugar ocupado pela Europa Ocidental no cálculo estratégico da política exterior do Brasil, cuidando-se de evidenciar a existência de uma assimetria particular nas concepções que têm os brasileiros quanto à diversidade política, econômica e psicossocial do continente europeu – portanto, das possibilidades de realização de projetos comuns. Do mesmo modo, no Capítulo 2, estabelece-se o lugar que a América Latina ocupou nas preocupações internacionais da França. A retomada das relações franco-brasileiras no imediato pós-guerra e a definição de uma primeira agenda bilateral, composta pelas questões culturais e coloniais, são os objetos do Capítulo 3. No capítulo seguinte, as relações entre os dois países são examinadas sob o prisma dos contenciosos que as caracterizaram até a década de 1960. Assim, procede-se à recuperação dos traços do denominado contencioso financeiro, bem como inserem-
-se no plano bilateral as preocupações do governo brasileiro relativas à criação do Mercado Comum Europeu. O Capítulo 5, que tem como objeto o conflito sobre a pesca da lagosta, busca delinear o estado de deterioração das relações bilaterais no início da década de 1960, dando a medida da incompreensão que moveu as diplomacias e do relativo alheamento dos atores sociais no encaminhamento de soluções para os momentos de crise das relações bilaterais. Finalmente, o Capítulo 6 passa em revista o processo de distensão que se seguiu e o nascimento de uma agenda neutra, em que sobraram oportunidades e faltaram projetos. Completa esse último trecho uma análise, muito breve, do redimensionamento das relações bilaterais, já nos anos 1990 até os dias atuais, a partir da coincidência auspiciosa de eventos que parecem romper um longo ciclo histórico de decadência.
Este livro é extensivamente baseado em minha tese de doutorado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Brasília em 2000. Trata-se, antes de tudo, de um trabalho de História das Relações Internacionais, largamente documentado com fontes primárias brasileiras e francesas, especialmente correspondencia secreta e confidencial. As dificuldades de acesso a documentação que cobrisse conceitualmente os períodos mais recentes, naturalmente reservada por regras de sigilo que impedem a sua comunicação aos pesquisadores, me levaram a tomar a decisão de não trazer essa discussão até os dias de hoje. Essa foi escolha difícil, mas preferi não comprometer a análise documental que evidencia justamente a natureza de uma parceria de construção tão difícil, vista pela intimidade das diplomacias nacionais, com fontes menos importantes que me dariam, se muito, uma visão bem impressionista dos fatos mais recentes.