Brasil e Argentina se necessitam mutuamente
Cadeia de prioridades brasileiras para a construção do processo de integração: relações sólidas e estáveis com a Argentina; ampliação do MERCOSUL, e construção da união sul-americana. Brasil e Argentina se necessitam mutuamente para edificar o seu projeto histórico. Isolados, estão condenados a perder a sua soberania e a sua identidade. Sozinhos, são presas fáceis das grandes potências.
De acordo com o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, por exemplo, “a integração entre o Brasil e a Argentina e seu papel decisivo na América do Sul deve ser o objetivo mais certo, mais constante, mais vigoroso das estratégias políticas e econômicas tanto do Brasil quanto da Argentina”. No caso argentino, claramente também existiria esta compreensão.
Alguns dados atuais
Atualmente, ao observar os destinos das exportações brasileiras para o mundo, a Argentina (8% do total) só aparece atrás da China (15%) e dos Estados Unidos (11%). No caso das exportações argentinas para o mundo, o Brasil (28% do total) é disparado o maior comprador, muito à frente de China (14%) e Estados Unidos (12%). Quase dois terços do fluxo comercial estão concentrados nas aduanas de Uruguaiana (27%), Santos (21%) e São Borja (16%). A cidade de Foz do Iguaçu (2%) representa muito pouco do volume de transações, sugerindo que o papel da ponte Tancredo Neves tem sido muito maior do que o mero intercâmbio mercantil.
Quando observamos somente a América do Sul, a Argentina representa aproximadamente a metade de todo o comércio do Brasil com a região. Em 2014, expressando a queda do PIB, o Brasil exportou US$ 14,3 bilhões e importou US$ 14,1 bilhões, valores 28% e 12% inferiores à média dos quatro anos anteriores. Vale reparar, ainda, que nessas relações a Argentina acumulou superávits comerciais entre 1995 e 2003. A atual assimetria comercial favorável ao Brasil não somente é pequeniníssima como decresce desde 2006. Para cada dólar em produtos comprados de Buenos Aires o Brasil lhe vende 1,01 dólar. Ou seja, o intercâmbio é praticamente equilibrado.
Também é muito importante chamar a atenção que mais de 90% das vendas brasileiras são compostas por produtos manufaturados. Destas, mais de 42% são bens do código 84 a 94 da Nomenclatura Comum do MERCOSUL (NCM), que inclui os produtos da indústria automobilística, além de máquinas e equipamentos. Os principais bens exportados foram automóveis, tratores, motocicletas, motores, air bags, indicadores de velocidade, caixas de direção, radiadores, embreagens, amortecedores, partes para assentos, caixas de marchas, eixos, freios, cintos de segurança, chassis, faróis, velas para ignição e alternadores. No caso das compras brasileiras, a situação é parecida, sendo 85% compostas por manufaturados. Os bens entre os códigos 84 e 94 também superaram os 48%. Estes resultados são consequência dos acordos da política automotiva, que estimula o comércio intra-regional e intra-firma, impondo para o setor uns dos mais altos níveis de Tarifa Externa Comum (TEC) dentro do bloco.
No caso dos Investimentos Diretos Estrangeiros (IDE) na Argentina, nos últimos oito anos, os principais responsáveis pelos fluxos de capital foram Estados Unidos (15,5%), Espanha (10,6%), Holanda (10,5%), Brasil (8,8%) e Chile (8,5%). O Brasil ocupa somente o quarto lugar. Ao analisar o estoque de IDE na economia argentina, os capitais brasileiros são muito menores que os de Estados Unidos, Holanda, Espanha e Chile. Apesar disso, se difunde uma suposta invasão brasileira. No geral, as justificativas são as compras da cervejaria Quilmes pela belga AmBev (em 2002), da petroleira Pérez Companc pela Petrobras (2002), da fábrica de cimento Loma Negra pela Camargo Corrêa (2005) e da frigorífica Swift Armour pela Friboi (2005). Outra ação de destaque foi a inauguração de uma sucursal da têxtil Coteminas em Santiago del Estero, em 2004. Por outro lado, não há no Brasil investimentos argentinos de magnitude comparável.
De volta para os 1990?
Em algumas análises sobre o MERCOSUL ainda prevalece uma tendência liberal de interpretar as concessões às economias menores como se fossem falhas, debilidades ou irregularidades. Desde esta ótica, estaria errado, por exemplo, que o bloco se afastasse do livre-comércio puro e oferecesse tratamento diferenciado para o Paraguai e o Uruguai. No entanto, o grande salto dado pelo Brasil e pela Argentina foi assumir que as regras podem ser flexibilizadas, para contrabalancear vantagens estruturais. O economista argentino Aldo Ferrer apresenta esta situação como a diferença entre um “MERCOSUL ideal” e um “MERCOSUL possível”. É necessário entender que salvaguardas, quotas e outras barreiras podem ser tranquilamente aceitas em um processo de integração, ainda que seja em áreas de livre-comércio ou em uniões aduaneiras. Devem ser estimuladas, e não criminalizadas, as medidas compensatórias ou de combate às assimetrias. Esta deve ser a grande fortaleza do bloco.
Brasil e Argentina se necessitam mutuamente para edificar o seu projeto histórico. Isolados, estão condenados a perder a sua soberania e a sua identidade. Sozinhos, são presas fáceis das grandes potências. A principal ameaça sobre o MERCOSUL até poucos dias atrás era a proposta de tratado de livre comércio (TLC) com a União Europeia. A postura do segundo governo Dilma, associada às posições livre-cambistas, ao oportunismo e ao revanchismo conservador de alguns membros do governo, fez com que a resistência ao acordo recaísse sobre a Argentina e, de alguma maneira, a Venezuela. O cenário deve sofrer mudanças com a recente eleição de Mauricio Macri. Antes mesmo de sua posse, o presidente eleito já questionou a própria entrada e a permanência dos venezuelanos no bloco. Além disso, fez referências positivas ao TLC com a Europa e acenou para a Aliança do Pacífico, oficialmente empurrada por Chile, Colômbia, Peru e México. Ainda pairam sobre a região as crescentes ameaças da Parceria Trans-Pacífico (TPP), da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP) e do Acordo sobre o Comércio de Serviços (TISA).
Por isso, hoje, a grande preocupação já é outra. Um novo experimento liberal simultâneo no eixo estratégico Brasil-Argentina, como ocorrido nos anos 1990, tende a comprometer não apenas os seus débeis processos nacionais de desenvolvimento, como também, e principalmente, as suas incipientes estratégias de autonomia e inserção internacional soberana. Além disso, teria o drástico efeito de paralisar o avanço do processo de integração regional acelerado nos últimos quinze anos.
Luciano Wexell Severo é Professor do curso de Economia, Integração e Desenvolvimento na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA).